Cobalto

Ar de Provença

O ar quem vem da Provença


Sobre o livro

Neste livro-disco, graças à iniciativa de Vanderley Mendonça, homenageamos a poesia trovadoresca provençal através de algumas de suas mais belas canções: duas de Arnaut Daniel, uma de Marcabru e uma de Bernart de Ventadorn, traduzidas por mim. As canções foram gravadas em São Paulo, por Antoni Rossell, Valéria Bittar e Luiz Fiaminghi, nos estúdios de meu filho, Cid Campos, responsável pela produção musical. Cid, cujo nome foi inspirado das minhas leituras do “Cid Campeador”, assim como o de Roland, meu filho mais velho, pela minha devoção à “Chanson de Roland”. Devido ao meu estado de saúde, gravei as leituras em meu apartamento, ficando Cid encarregado da equalização.
Conheci Antoni Rossell, artista catalão, professor universitário e cantor de música medieval, quando ele veio a São Paulo, a convite da PUC, em 2011. A querida e saudosa profa. Jerusa Ferreira, chamou-me para comparecer a uma aula que ele daria sobre a poesia provençal. A certa altura, falando sobre o trovador Bernart de Ventadorn, ele começou a cantar “Can vei la lauzeta mover”; para sua surpresa, eu entoei com ele as primeiras estrofes da magnífica obra, uma das mais belas do século XII. Foi canção à primeira vista. Ficamos obviamente encantados e amigos.
Entusiasmada, Jerusa propôs que fizéssemos uma apresentação no auditório da PUC. Preparei um roteiro que se compunha dos textos a serem cantados por Antoni com instrumentos medievais, e algumas traduções e poe­mas meus inspirados nas canções provençais, e que terminava com a canção de Guillhem de Peitieu “Fiz um Poema sobre Nada” e com o trecho inicial da “Conferência sobre Nada”, de John Cage. Adriana Calcanhotto, que começara a se interessar pela poesia dos “Mais provençais”, estava por aqui, e a convidamos para participar do evento. A nós se associara Vanderley Mendonça, que se expressava muito bem em catalão e fez uma ponte perfeita com Antoni. Marcado o dia, tudo pronto, entramos eu e Vanderley na PUC, para encontrar as portas do auditório fechadas. Soubemos então que Boris Schnaiderman, marido de Jerusa, estava hospitalizado e ela se achava ao seu lado. Por telefone conseguimos que ela liberasse as chaves e só então pudemos adentrar o recinto do auditório. Vendo as cadeiras vermelhas, todas vazias, e pensando nos textos  “sobre nada”, ocorreu-me uma ideia: subi ao palco, sentei-me e pedi ao Vanderley que me filmasse em seu celular lendo a “Conferência sobre Nada”,  e que desse ênfase às cadeiras vazias. Assim se fez. Como o belíssimo evento não pôde ser filmado, ficou sendo esse o único registro daquele noite. Pode ser visto na internet, na gravação original de Vanderley e na adicional de André Vallias, ambas com música ambiente de John Cage. Vanderley publicou então uma plaquete contendo os principais textos utilizados naquele dia; ela complementa agora o presente volume, com a única novidade de incluir desta feita a versão da primeira estrofe de “Kalenda Maia”, de Raimbaut de Vaqueiras, numa impressão a cores que põe em evidência a sonoridade polirrímica da canção. Anos antes, tive a insólita oportunidade de visitar o túmulo do trovador, em 2001, na sua cidade de origem (pronunciado pelos franceses com acento na última sílaba), levado a ele pelo poeta Julien Blaine. Cid me fotografou junto ao pequeno monumento dedicado ao Raimbaut das multirrimas, que é também multilingue em outra canção, igualmente  traduzida, com estrofes em provençal, italiano, francês, gascão e galego. Acrescentamos estas lembranças ao extraordinário momento que vivemos na apresentação da PUC.

Augusto de Campos


Sobre os Autores

Arnaut Daniel

Arnaut Daniel foi da província a mesma de que foi Arnaut de Maruelh, do bispado de Pei­rigord, de um castelo que se chama Ribeirac, e foi homem gentil. E aprendeu bem letras e se deleitou em trovar. E abandonou as letras, e se fez jogral, e adotou um modo de trovar em rimas raras, razão por que suas canções não são fáceis de entender nem de aprender. E amou uma nobre senhora de Gasconha, mulher do senhor Guillem de Buovilla, mas parece que a dama jamais lhe deu prazer consoante o direito de amor; razão por que ele diz:
Eu sou Arnaut que amasso o ar (amo Laura)
e caço a lebre com o boi
e nado contra a maré.

Bernart de Ventardorn

Bernart de Ventadorn foi de Limousin, do Castelo Ventadorn. Foi homem pobre de nascimento, filho de um servo, que era padeiro, que aquecia o forno para assar o pão do castelo. Tornou-se belo e habilidoso, sabia cantar e trovar bem e tornou-se cortês e instruído. O visconde de Ventadorn, seu senhor, dele muito gostava, pelo seu trovar e pelo seu canto e por isso lhe prestou grandes honras. O visconde de Ventadorn tinha mulher, jovem, gentil e alegre, que gostava de Bernart e de suas canções e se enamorou dele e ele pela senhora, por maneira como compunha canções e seus versos sobre ela, pelo amor que por ela sentia e pelo que ela lhe valia. Durou muito tempo o amor deles antes que o visconde e toda a gente percebesse. E quando o visconde percebeu, afastou-a dele e enclausurou a sua esposa. A senhora despediu-se de Bernart para que ele partisse e se afastasse daquela terra. Ele saiu e foi para a corte da duquesa da Normandia, que era jovem, de grande valor e sabia de mérito, de honra e de louvores. E lhe chegaram aprazíveis as canções e os versos de Bernart e ela bem o recebeu e o acolheu. Muito tempo ele passou na corte dela e se apaixonou por ela e ela por ele e ele fez muitas canções sobre ela. E estando com ela, o rei Henrique da Inglaterra a tomou por esposa, tirou-a da Normandia e a levou para a Inglaterra. Bernart ficou triste e doente e foi-se para os lados do bom conde Raimon de Tolosa e esteve com ele até quando o conde morreu. Bernart, devido às dores do amor, ingressou na ordem de Dalon e ali faleceu. E a mim, Uc de Saint-Circ, me contou o que escrevi sobre ele o visconde Ebles de Ventadorn, filho da viscondessa que Bernart amara. E fez essa canção que você ouve agora.

Macabru

Marcabru foi abandonado na porta de um rico homem e não se sabia quem ele era ou de onde. Aldric del Vilar o criou. Mais tarde esteve ele com um trovador chamado Cercamon, até que começou a trovar: tinha o nome de Panperdut, mas dali em diante chamou-se Marcabru. Naquele tempo o que se cantava eram versos e não se chamavam canções. Era muito conhecido e ouvido pelo mundo e temido pela sua língua, pois dele era tanto o maldizer, que, finalmente, foi morto pelos castelhanos da Guiana, dos quais havia dito tanto mal.

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Canções

Canso do'ill mot son plan e prim

[Arnaut Daniel]

Canso do’ill mot son plan e prim
fas pus era botono’ill vim,
e l’aussor sim
son de color
de maintha flor,
e verdeia fuelha,
e’ill chan e’ill bralh
sono a l’ombralh
dels auzels per la bruelha.

Pels bruelhs aug lo chan e’l refrim
e per qu’om no m’en fassa crim
obri e lim
motz de valor
ab art d’Amor
don non ai cor que’m tuelha;
ans, si be’m falh,
la sec a tralh,
on plus vas me s’orguelha.

Re no val orguelh d’amador
qu’ades trabuca son senhor
del luec aussor
bas el terralh
per tal trebalh
que de joi lo despuelha:
dreitz es lacrim
e ard’e rim
se quel d’amor janguelha.

Bona dona vas cui azor,
ges per erguelh no vau allor,
mas per paor
del devinalh
don jois trassalh
fauc semblan que no’us vuelha,
qu’anc no’ns jauzim
de lur noirim:
mal m’es que lor o cuelha.

Si ben vauc per tot ab esdalh,
mos pessamens lai vos assalh,
qu’ieu chan e valh
pel joi que’ns fim
lai o’ns partim,
don soven l’uelh me muelha
d’ir e de plor
e de dussour,
car pro ai d’Amor que’m duelha.

Ar ai fam d’amor don badalh
e non sec mezura ni talh;
sols m’o engualh
qu’anc non auzim
del temps Caim
amador mens acuelha
cor trichador
ni bauzador;
per que mos jois capduelha.

Dona qui qu’es destuelha,
Arnautz dreg cor
lai o’es honor
quar vostre pretz capduelha.

Canção de amor cantar eu vim

Tradução: Augusto de Campos

Canção de amor cantar eu vim
ao ver o verde do capim
e o campo enfim
cheio de cor
de muita flor
e verde ver a folha,
para que o ar
no meu cantar
os pássaros recolha.

Recolho o som do ar assim
e para revivê-lo em mim
eu canto, sim,
pois sei compor
com arte e ardor
e Amor não há quem tolha;
nalgum lugar
vou encontrar
alguém, não tenho escolha.

Se escolhe Amor ao amador
o faz escravo de um senhor:
aonde for,
o faz voar
e revoar,
ao vento como bolha;
triste e ruim
é sempre o fim
de quem Amor acolha.

Assim acolhe com calor
a dama bela ao trovador,
mas o temor
do mau olhar
não quer deixar
que Amor aflore e colha
em seu jardim
a flor carmim
que a inveja aferrolha.

Ferrolhos põe, para apartar
a bela dama do seu par
e a exilar
nalgum confim,
longe, sem-fim;
por isso o olhar se molha
de ira e dor,
por não dispor
da flor, que se desfolha.

Desfolha, a flor, a descorar,
mas sua cor há de voltar
pois meu trovar,
claro clarim,
não há Caim
que a ouvi-lo não se encolha,
nem fingidor
ou traidor
que ele não desacolha.

À Dama ama e olha
Arnaut, cantor,
que ante esse Amor
todo outro amor se esfolha.

Lo ferm voler qu'el cor m'intra

[Arnaut Daniel]

Lo ferm voler qu’el cor m’intra
no’m pot ges becs escoissendre ni ongla
de lauzengier qui pert per mal dir s’arma;
e pus no l’aus batr’ab ram ni verja,
sivals a frau, lai on non aurai oncle,
jauzirai joi, en vergier o dins cambra.

Quan mi sove de la cambra
on a mon dan sai que nulhs om non intra
-ans me son tug plus que fraire ni oncle
non ai membre no’m fremisca, neis l’ongla,
aissi cum fai l’enfas devant la verja:
tal paor ai no’l sia prop de l’arma.

Del cor li fos, non de l’arma,
e cossentis m’a celat dins sa cambra,
que plus mi nafra’l cor que colp de verja
qu’ar lo sieus sers lai ont ilh es non intra:
de lieis serai aisi cum carn e ongla
e non creirai castic d’amic ni d’oncle.

Anc la seror de mon oncle
non amei plus ni tan, per aquest’arma,
qu’aitan vezis cum es lo detz de l’ongla,
s’a lieis plagues, volgr’esser de sa cambra:
de me pot far l’amors qu’ins el cor m’intra
miels a son vol c’om fortz de frevol verja.

Pus floric la seca verja
ni de n’Adam foron nebot e oncle
tan fin’amors cum selha qu’el cor m’intra
non cug fos anc en cors no neis en arma:
on qu’eu estei, fors en plan o dins cambra,
mos cors no’s part de lieis tan cum ten l’ongla.

Aissi s’empren e s’enongla
mos cors en lieis cum l’escors’en la verja,
qu’ilh m’es de joi tors e palais e cambra;
e non am tan paren, fraire ni oncle,
qu’en Paradis n’aura doble joi m’arma,
si ja nulhs hom per ben amar lai intra.

Arnaut tramet son chantar d’ongl’e d’oncle
a Grant Desiei, qui de sa verj’a l’arma,
son cledisat qu’apres dins cambra intra.

O Firme intento que em mim entra

Tradução: Augusto de Campos

O firme intento que em mim entra
língua não pode estraçalhar, nem unha
de falador, que fala e perde a alma;
e se não lhe sei dar com ramo ou verga,
lá onde ninguém pode conter meu sonho,
irei fruí-lo em vergel ou em câmara.

Quando me lembro de sua câmara
onde eu bem sei que nenhum homem entra,
por mais que irmão ou tio danem meu sonho,
eu tremo — membro a membro — até a unha,
como faz um menino em frente à verga:
tanto é o temor de que me falte a alma.

Antes meu corpo, e não minha alma,
consentisse acolher em sua câmara!
Fere-me o corpo mais do que uma verga,
que onde ela está nem o seu servo entra;
com ela eu estaria em carne e unha,
sem castigo de amigo ou tio, nem sonho.

À irmã do meu tio nem por sonho
eu não amei assim com tanta alma!
Vizinho como o dedo de uma unha,
se ela quiser, serei de sua câmara:
a mim o amor que no meu corpo entra
faz como um homem forte a frágil verga.

Desde que há flor na seca verga
e Adão deu neto ou tio, não houve sonho
de amor tão grande como o que me entra
no coração, no corpo e até na alma;
onde quer que ela esteja, em praça ou câmara,
a ela estou unido como à unha.

É assim que se entranha e se enunha
nela este anelo como casca em verga;
o amor me faz palácio, torre e câmara,
e a irmão, pai, tio desdenho no meu sonho;
ao paraíso em riso irá minha alma
se lá por bem amar um homem entra.

Arnaut tramou seu canto de unha e sonho
só por aquela que lhe verga a alma
de amante que, só mente, em câmara entra.

Can vei la lauzeta mover

[Bernart de Vantadorn]

Can vei la lauzeta mover
 de joi sas alas contra·l rai,
que s’oblid’e·s laissa chazer
per la doussor c’al cor li vai,
ai! tan grans enveya m’en ve
de cui qu’eu veya jauzion!;
meravilhas ai, car desse
lo cor de dezirer no·m fon.

Ai, las! tan cuidava saber
d’amor, e tan petit en sai!
Car eu d’amar no·m posc tener
celeis don ja pro non aurai.
Tout m’a mo cor, e tout m’a me,
e se mezeis e tot lo mon;
ecan se·m tolc, no·m laisset re
mas dezirer e cor volon.

Anc non agui de me poder,
ni no fui meus de l’or’en sai
que·m laisset en sos olhs vezer
en un miralh que mout me plai.
Miralhs, pus me mirei en te,
m’an mort li sospir de preon
c’aissi·m perdei com perdet se
 lo bels Narcisus en la fon.

De las domnas me dezesper;
ja mais en lor no·m fiarai;
c’aissi com las solh chaptener,
enaissi las deschaptenrai.
Pois vei c’una pro no m’en te
vas leis, que·m destrui e·m cofon,
totas las dopt’e las mescre
car be sai c’atretals se son.

D’aisso·s fa be femna parer
ma domna, per qu’e·lh o retrai,
car no vol so c’om deu voler,
e so c’om li deveda, fai.
Chazutz sui en mala merce,
et ai be faih co·l fols en pon;
e no sai per que m’esdeve,
mas car trop puyei contra mon.

Merces es perduda, per ver,
et eu non o saubi anc mai;
car cilh qui plus en degr’aver
no·n a ges; et on la querrai?
A! can mal sembla, qui la ve,
que[d] aquest chaitiu deziron
que ja ses leis non aura be,
laisse morir, que no l’aon!

Pus ab midons no·m pot valer
precs ni merces ni·l drehz qu’eu ai,
ni a leis no ven a plazer
qu’eu l’am, ja mais no·lh o dirai.
Aissi·m part de leis e·m recre;
mort m’a, e per mort li respon,
e vau m’en, pus ilh no·m rete,
chaitius, en issilh, no sai on.

Tristans, ges no·n auretz de me,
qu’eu m’en vau, chaitius, no sai on.
De chantar me gic e·m recre,
e de joi e d’amor m’escon.

Ao ver a ave leve morrer

Tradução: Augusto de Campos

Ao ver a ave leve mover
alegre as alas contra a luz,
que se olvida e deixa colher
pela doçura que a conduz,
Ah! Tão grande inveja me vem
desses que venturosos vejo!
É maravilha que o meu ser
Não se dissolva de desejo.

Ah! Tanto julguei saber
De amor e menos que supus
sei, pois amar não me faz ter
essa a que nunca farei jus.
A mim de mim e a si também
de mim e tudo o que desejo
tornou e só deixou querer
maior e um coração sobejo.

Eu renunciarei a me reger
desde o dia em que os olhos pus
no olhar que vi transparecer
no belo espelho em que reluz.
Espelho, pois que te vi bem,
morri na luz do teu reflexo
como, perdido de se ver,
Narciso no seu próprio amplexo.

Nas mulheres não sei mais crer,
nenhuma agora me seduz.
Se ela não quer me conhecer,
as desconheço em minha cruz.
Nenhuma delas me convém
e o que elas fazem não tem nexo,
de nenhuma quero saber,
desprezo a todas do seu sexo.

Bem feminino é o proceder
dessa que me roubou a paz.
Não quer o que deve querer
e tudo o que não deve fazer.
Má sorte enfim me sobrevém,
fiz como um louco numa ponte,
e tudo me foi suceder
só porque quis mais horizonte.

Piedade já não pode haver
no universo para os mortais.
Se aquela que a devia ter
não tem, quem a terá jamais?
Ah! Como acreditar que alguém
de olhar tão doce e clara fronte
deixe que eu morra sem beber
água de amor em sua fonte?

Já que ela não me quer valer
e não se move com meus ais,
e nem sequer lhe dá prazer
que a ame, não lhe direi mais.
Parto e abandono todo o bem,
matou-me e, morto, lhe respondo.
Me vou, pois ela não me quer,
a amargo exílio, não sei onde.

Tristão, não devo mais dizer,
só sei que vou, não sei aonde.
Calo o meu verso e o meu viver,
da alegria e do amor me escondo.

Dirai vos senes duptansa

[Macabru]

Dirai vos senes duptansa
d’aquest vers la comensansa
li mot fan de ver semblansa:
–Escoutatz!
qui ves Proeza balansa
semblansa fai de malvatz.

Jovens falh e franh e briza
et Amors es d’aital guiza
de totz cessals a ces priza,
–Escoutatz!
–quascus en pren sa devisa
Ja pois no·n sera cuitatz.
Amors vai com la belluja
Que coa·l fuec en la suja,
Art lo fust e la festuja,
–Escoutatz!
E non sap vas qual part fuja
Cel qui del fuec es gastatz.

Dirai vos d›amor cum signa:
de sai guarda, de lai guigna,
sai baiza e lai rechinha.
–Escoutatz! –

Plus sera dreicha qe ligna
can ieu serai sos privatz.
A mors soli’ esser drecha,
mas er’es torta e brecha,
et a coilhida tal decha
–Escoutatz! –
–que lai on non mordre, lecha
–plus aspramens no fai chatz.

Greu será mais Amors vera
Pos de mel trier la cera
Anz sap si pelar la pera;
–Escoutatz! –
 Doussa·us er com chans de lera
Si sol la coa·l troncatz.

Ab diables pren barata
qui fals’Amor acoata;
no·l cal qu’autra verga·l bata;
– Escoutatz! –
plus non sent que selh qui·s grata
tro que s’es vius escorjatz.

Amors es mout de mal avi
mil homes a mortz ses glavi;
Dieus no fetz tant fort gramavi,
– Escoutatz! –
que tot nesci del pus savi
no·n fassa, si·l ten al latz.

Amors a usatge d’ega
que tot jorn vol c’om la sega,
e ditz que no·l dara trega
–Escoutatz! –
–mas que pueg de leg’en lega,
–sia dejus o disnatz.

Cujatz vos qu’ieu non conosca
d’amor si’s orba o losca?
Sos digz aplan’ et entosca;
– Escoutatz! –
plus suau poing q’una mosca
mas plus greu n’es hom sanatz.

Qui per sen de femna reigna
Dreitz es que mals li aveigna,
Si cum la Letra·ns enseigna
– Escoutatz! –
Malaventura·us veigna
Si tuich no vos en gardatz!

Marcabrus, fills Marcabruna,
Fo engendratz en tal luna
Qu’el sap d’Amor cum degruna,
– Escoutatz! –
Quez anc non amet neguna
Ni d’autra non fo amatz.

Direi logo sem tardança

Tradução: Augusto de Campos

Direi logo sem tardança,
Para doer na lembrança,
Meu verso que não se cansa:
–Cuidado!–
Quem diante do Amor balança
Cansará de andar errado.

A velhice enruga o rosto,
Mas o Amor, sempre disposto,
A todos cobra o seu gosto:
–Cuidado!–
Todos pagam esse imposto
Que nunca será quitado.

Amor é como a fagulha
Adormecida na hulha,
Que o fogo desembrulha:
–Cuidado!–
Não pode fugir o pulha
Que pelo fogo é fisgado.

Direi do Amor como isca,
Que ora olha e ora pisca,
Ora beija, ora mordisca:
–Cuidado!–
Será mais reto que risca
Se eu estiver ao seu lado.

Outrora o Amor era honesto,
Agora é torto e funesto,
É como um gato molesto:
–Cuidado!–
Ou te morde ou lambe, lesto,
Com língua de lixa armado.

Sua lei é traiçoeira,
Toma o mel e deixa a cera,
Só para si pela a pêra:
–Cuidado!–
Para tê-lo na coleira
Melhor é vê-lo castrado.

Quem ao falso Amor se ata,
Com o diabo contrata,
Da o dorso à chibata;
–Cuidado!–
Quem muito se esgaravata
Acaba sendo escorchado.

O Amor nada tem de belo,
Mata a gente sem cutelo,
Deus não fez pior flagelo;
–Cuidado!–
Ao fero fará farelo
O Amor, se não for domado.

Amor faz ao modo de égua:
Todo o dia te carrega
E nunca mais te dá trégua;
–Cuidado!–
Que lá vai de légua em légua
Correndo desenfreado.

Eis como o Amor se aparelha:
Ele é cego e olha de esguelha,
Leve língua, atenta orelha;
–Cuidado!–
Morde mais doce que abelha,
Porém custa a ser curado.

Quem de mulheres é amigo
Com razão sofre castigo,
A Escritura diz comigo:
–Cuidado!–
Ficarás ao desabrigo
Se não fores avisado.

Marcabru, de Marcabru’a,
Foi engendrado em tal lua
Que sabe o Amor como atua:
–Cuidado!–
Ainda que do Amor não frua,
Não ame nem seja amado.

Sobre o Tradutor

Augusto de Campos (1931) é um dos criadores da Poesia Concreta, junto com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Um dos poetas mais radicais dos séculos XX e XXI, como tradutor, sempre esteve ligado esteticamente à tradição, vertendo à lingua portuguesa a obra de poetas “inventores”, para usar um termo utilizado por Ezra Pound. Ente inúmeras obras das mais diferentes línguas (muitas pela primeira vez vertidas em português) Augusto de Campos traduziu os trovadores recriando a sonoridade do provençal medieval. Tais canções só têm paralelo estético e musical nessas traduções.