Neste livro-disco, o poeta Augusto de Campos, homenageia a poesia trovadoresca provençal através de algumas de suas mais belas canções: duas de Arnaut Daniel, uma de Marcabru e uma de Bernart de Ventadorn. As canções em provençal foram gravadas, em São Paulo, por Antoni Rossell, Valéria Bittar e Luiz Fiaminghi, no MC2 Studio, de Cid Campos, responsável pela produção musical. As leituras em português foram feitas pelo próprio Augusto de Campos, em seu apartamento em SP.
Esta pequena antologia, portanto, é o resultado de um concerto apresentado no Tuca, teatro da PUC de São Paulo, em setembro de 2011, apresentado por Augusto de Campos, Antoni Rossell e Adriana Calcanhoto, complementada agora, neste presente volume, com duas novidades: a versão da primeira estrofe de “Kalenda Maia”, de Raimbaut de Vaqueiras, impressa a cores, que põe em evidência a sonoridade polirrímica da canção, e a tradução inédita da uma canção multilíngue de Raimbaut de Vaqueiras, com estrofes em provençal, italiano, francês, gascão e galego.
Sobre os autores
Arnaut Daniel de Riberac foi um trovador do século XIII, cuja obra foi escrita em occitano, mais especificamente, no dialeto limosino. Chamado por Dante de il miglior fabbro (o melhor criador) e por Petrarca, em seus Triunfos, de gran maestro d’amore e fra tutti il primo (o melhor entre todos). No século XX, deveu-se ao trabalho de divulgação de Ezra Pound a retomada do interesse por sua obra, que repercutiu no Brasil, por meio dos ensaios e traduções de Augusto de Campos. Possivelmente, Daniel nasceu no castelo de Ribérac, em Périgord, atual departamento francês da Dordonha, em data desconhecida, mas que pode se situar entre 1150 e 1160, pois em um de seus poemas menciona ter assistido à coroação do rei Felipe II Augusto (1180), além disso já era um trovador conhecido em torno do ano 1195. Devido a sua inventividade, Daniel é considerado um dos principais representantes do trobar clus, estilo hermético da poesia trovadoresca. Foram conservadas 18 composições suas, duas delas com música, tratando sempre, salvo em uma, de tema amoroso. É considerado o criador da sextina, uma canção com estrofes de seis versos, cujo primeiro exemplo seria Lo ferm voler qu’el cor m’intra.
A admiração de Dante por Daniel foi representada em pelo menos dois momentos, um no De vulgari eloquentia, outro na Divina Comédia, na qual é narrado o encontro de ambos poetas. Nessa passagem, Dante não utilizou sua língua materna, o italiano em dialeto toscano, mas sim a língua de Daniel, o occitano:
Tan m’abellis vostre cortes deman,
qu’ieu no me puesc ni voill a vos cobrire.
Ieu sui Arnaut, que plor e vau cantan;
consiros vei la passada folor,
e vei jausen lo joi qu’esper, denan.
Ara vos prec, per aquella valor
que vos guida al som de l’escalina,
sovenha vos a temps de ma dolor.
(Purg., XXVI, 140-147)
Outra referência a Arnaud Daniel aparece no poema The Waste Land, em cuja dedicatória a Ezra Pound, T.S. Eliot grafou il miglior fabbro assim como Dante chamara Daniel. No Brasil, a enigmática palavra noigandres, que aparece em um dos seus poemas, serviu de título da revista de poesia concreta.
Bernart de Ventadorn (c.1130 – c.1200) é conhecido pela sua mestria com que popularizou a trova. Sua biografia, muito romantizada meio século mais tarde pelo trovador Uc de Saint-Circ, é pouco conhecida. Diz ser filho de um homem de armas e uma padeira, no castelo de Ventadorn, em Corrèze, na região de Limousin. Tornou-se discípulo de seu mestre e protetor, o Visconde Eble III, também um grande trovador, que o instruiu na arte da composição. Teria composto a sua primeira canção para a mulher do Visconde, e pela ousadia foi expulso do castelo. Seguiu, então, para Inglaterra, para a corte de Eleonor da Aquitânia, esposa do rei inglês Henrique Plantageneta (pais de Ricardo Coração-de-Leão). Bernart certamente conheceu glória e prestígio em vida: muitos dos trovadores de seu tempo o mencionaram em suas canções e se basearam nas suas obras — traduzidas ou adaptadas, ainda na Idade Média, para várias outras línguas. Foi um grande viajante, frequentando várias cortes européias e expandindo os horizontes da sua poesia, na Idade Média. Em 1215 o professor Bolonhês Boncompagno escreveu “Quanta fama atribui ao nome de Bernard de Ventadorn.
A poesia de Bernart é idealista e apaixonada; mais do que apenas referências a um amor platônico, como era comum na época. O poeta usou passagens de clara sensualidade, ora descrevendo o corpo de sua dama, ora demonstrando o desejo que ela lhe causava. São constantes em sua obra referências à mitologia greco-romana, metáforas bem estruturadas e métrica perfeita. Seu biógrafo diz-nos ainda que Bernart terminou os seus dias no mosteiro cisterciense de Dalon (para onde se retirou também o trovador Bertran de Born). De Bernart de Ventadorn, um dos mais famosos e celebrados trovadores provençais, conservaram-se quarenta e uma composições de atribuição segura, na sua grande maioria canções de amor. A mais famosa é Can vei la lauzeta mover.
Marcabru (1130–1150) é um dos primeiros trovadores cujos poemas são conhecidos. Não há informações certas sobre ele; as duas vidas anexadas aos seus poemas contam histórias diferentes, e ambas são evidentemente construídas com base em sugestões dos poemas. De acordo com a breve vida na BnF ms. 12.473, Marcabru era da Gasconha (detalhes do dialeto gascão em seus poemas confirmam isso), filho de uma mulher pobre chamada Marcabruna. De acordo com a “biografia” mais longa (MS. Vat. Lat. 5232) Marcabru foi abandonado na porta de um homem rico e sua origem desconhecida. Foi criado por Aldric del Vilar, aprendeu a fazer poesia com Cercamon, foi inicialmente apelidado de Pan-perdut e depois de Marcabru. Tornou-se famoso, e os senhores da Gasconha, sobre os quais ele havia dito muitas coisas ruins, acabaram condenando-o à morte. Isto parece basear-se nos seus poemas (um servintés entre ele Aldric del Vilar) e suposições. Quarenta e quatro poemas são atribuídos a Marcabru. Erudito, muitas vezes difícil, às vezes obsceno, crítico implacável da moralidade de senhores e damas. Experimentou a pastorela (para criticar a futilidade da luxúria — uma narra um orador insultado por uma pastora. Outro conta como a tentativa de um homem de seduzir uma mulher cujo marido estava nas cruzadas é firmemente rejeitada). Credita-se a ele a criação da tensó, num embate com Uc Catola (já em 1133) sobre a natureza do amor e o declínio do comportamento cortês. Marcabru foi uma influência poderosa nos poetas posteriores que adotaram o estilo trobar clus. Quatro melodias monofônicas da poesia de Marcabru também sobreviveram; além disso, três melodias de textos poéticos podem ser atribuídas a ele.
Sobre o tradutor
Augusto de Campos (1931) é um dos criadores da Poesia Concreta, junto com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Um dos poetas mais radicais dos séculos XX e XXI, como tradutor, sempre esteve ligado esteticamente à tradição, vertendo à lingua portuguesa a obra de poetas “inventores”, para usar um termo utilizado por Ezra Pound. Ente inúmeras obras das mais diferentes línguas (muitas pela primeira vez vertidas em português) Augusto de Campos traduziu os trovadores recriando a sonoridade do provençal medieval. Tais canções só têm paralelo estético e musical nessas traduções.